Relatório de Maria Esmeralda Pereira Lobo Bonifácio (1935-2014)
Coleópteros de Portugal, 2010
Relatório de Maria Esmeralda Pereira Lobo Bonifácio (1935-2014)
A execução deste trabalho só foi possível graças à Professora Doutora Manuela Gama Assalino, minha orientadora e amiga dedicada, ao Doutor Manuel Assunção Diniz, por todo o apoio concedido e também ao Professor Doutor Manoel Paulino de Oliveira, mestre Entomologista que me inspirou na realização deste modesto trabalho
Bem hajam.
O PORQUÊ DO MEU INTERESSE PELOS COLEÓPTEROS
Após quatro décadas e meia de permanência em Angola, deu-se o meu regresso inevitável às origens. Despojada de todos os bens materiais adquiridos à custa de muito trabalho e de uma carreira profissional "cortada a meio", não se afigurava fácil a adaptação a tal situação...
la começar pela estaca zero. Sem quaisquer ajudas nem conhecimentos influentes, restava-nos, a mim e ao meu marido, as magras reformas antecipadas (alheias à nossa vontade). Éramos uns "retornados" vindos, como tantos outros, das ex-colónias, desta feita para Coimbra, afim de juntos podermos superar as despesas que fazíamos com a formatura do nosso único filho, que já antes do 25 de Abril tinha vindo para Portugal para se matricular no curso de Medicina.
Durante cinco anos vivi esperando melhores dias e tudo ia procurando ultrapassar, mas o vazio que sentia coma falta daquele ofício, que aos dezoito anos tinha iniciado e que tanto me ligava ao "Mundo Maravilhoso dos Insectos", criava em mim uma lacuna que não conseguia preencher. longe daquele mundo que me havia habituado a amar e sem esperança de novo encontro, sentia-me uma pessoa terrivelmente infeliz.
Também o meu marido, Técnico Especializado em genética e melhoramento de milhos, que nunca conseguiu voltar a trabalhar nesta área, sofria inconformado a meu lado. lentamente foram surgindo as doenças, e aos poucos ia perdendo a força e a razão...
Eu tinha que ser forte para o ir amparando ...
Foi graças ao facto de termos alugado um apartamento ao Professor Doutor Albertino Barros (Ginecologista), que o meu destino se alterou. Conhecedor de todo o nosso drama e sensibilizado com a nossa situação, preocupava-se bastante comigo, pois sabia do meu apego aos Insectos, através de conversas que eu ia tendo com a sua esposa Sra. Dona Maya, que também adorava as Borboletas.
Certo dia o casal foi visitar o Museu Zoológico da Universidade de Coimbra. A Conservadora do Museu, senhora a quem o Professor Doutor Albertino tinha assistido ao nascimento dos filhos, facultou-lhes o acesso às colecções de insectos, naquela época interditas ao público. Deparando-se com tal situação, tiveram que perguntar qual a razão para aqueles tesouros não estarem expostos ao público. Com ar desolado a Conservadora limitou-se a dizer que estava "encerrado por falta de meios e pessoal especializado".
Ali, naquele momento, o Professor Doutor Albertino, virando-se para a sua esposa, disse: "tenho a certeza que a nossa inquilina iria aqui encontrar o seu mundo ...", Sem hesitar explicou à Conservadora a minha situação e a necessidade daquele trabalho para melhoria do meu estado de saúde. Querendo ser amável com uma pessoa que tanto estimava, mostrou-se muito interessada em me conhecer, mas dizendo que nada podia prometer, já que os ingressos no Museu estavam de certo modo cancelados.
E foi assim que, num dia de Inverno em que o sol brilhou, fui levada pela Sra. Dona Maya ao Departamento de Zoologia, onde fui apresentada à Conservadora, ficando assente que iria por lá passando até surgir uma oportunidade. Vários meses passaram, e a oportunidade teimava em não chegar. Já sem ânimo, frustrada e ao mesmo tempo envergonhada comigo mesma, perdia a força para prosseguir. Questionava-me como é que uma pessoa como eu, sem grau académico relevante, se achava capaz de exercer funções no Museu Zoológico da Universidade de Coimbra?
Se por um lado a minha vida de trabalho em Angola dedicada à Entomologia, tendo começado como Auxiliar de Laboratório de Entomologia e Fitopatologia, trabalhando afincadamente ao lado de Entomologistas como o Dr. Alexandre José Duarte, e os Engenheiros António Fonseca Ferrão e José Passos de Carvalho, tendo conseguido atingir o' topo' da carreira, e sido considerada pelos meus superiores "perito de excepcional competência" me envaidecia, também por outro, me sentia cada vez mais frustrada e incompetente.
Sabia que neste mundo em que vivemos, nem sempre os mais dedicados, são reconhecidos. Como católica, lembrava-me daquela frase da Bíblia que diz: "Aqueles que se exaltam, serão humilhados, e os que se humilham serão exaltados". Só esta grande fé em Deus Todo-Poderoso me foi dando coragem.
Foi num daqueles dias, despojado de esperança e entregue aos meus pensamentos, que ao passar pela Zoologia, uma porta se abriu, de lá saindo uma senhora de bata branca, porte gentil e olhos vivos que ofereciam confiança, me perguntou: "É a senhora que veio de Angola?"
- "Sim", respondi, um pouco envergonhada.
Era a Professora Doutora Manuela Gama Assalino, a quem hoje tudo devo!
Foi ali que lhe relatei toda a minha vida passada em Angola e onde uma descolonização mal sucedida, originara toda aquela tragédia ... Ao ouvir citar Nova Lisboa e Chianga, reconheceu as minhas palavras nas do seu marido que também lá tinha estado e que, por ironia do destino, eu conhecia. Com o passar dos anos as amizades nascidas em Angola tornaram-se mais fortalecidas em Portugal.
Com o desenrolar desta história real, parece-me estarmos na presença de um "puzzle" onde todas as peças se encaixam ...
Foi assim que, em Janeiro de 1984, iniciei a minha actividade como auxiliar da Professora Manuela, tendo esta assumido a responsabilidade da minha entrada, embora sem compromisso. Apresentou-me ao Professor Doutor Arsélio Pato de Carvalho - Director do Museu Zoológico, deixando amavelmente que eu de novo narrasse a minha história. Senti então que estava na presença de alguém humano e que gentilmente também me acolhia, tendo ficado admirado com a minha grande vontade de trabalhar. Algum tempo passou, e foi com enorme surpresa que um dia, pelas mãos da Professora Doutora Manuela, me foram entregues 5000$00 atribuídos pelo Conselho Directivo. Fiquei radiante, pois aquele dinheiro vinha dar-me estímulo e vontade para prosseguir.
No Departamento de Zoologia fiz grandes amizades e reencontrei a vontade de viver. Com a boa compreensão e amizade da Professora Doutora Manuela, tenho desenvolvido algumas tarefas, entre elas a colaboração na arrumação sistemática das conchas, procedendo à sua limpeza e conservação e posterior arrumação em caixas de plástico, que substituíram as de lata, que se apresentavam em mau estado de conservação. Colocaram-se, em cada uma das caixas, etiquetas novas com o nome dos géneros e espécies, mantendo-se sempre as antigas, muitas delas ilegíveis, dados os anos de existência. Procedeu-se posteriormente à numeração das caixas, segundo a ordem como se encontravam arrumadas onde se fizeram catálogos manuscritos com a numeração dada, tornando assim as colecções mais acessíveis à consulta dos sistematas.
Tendo em conta a falta de meios de toda a espécie, foi apenas e tão só graças à ajuda e compreensão desta nobre Senhora, que, tenho conseguido coordenar as tarefas em que me empenhei, pois fui renumerada durante bastante tempo com a sua ajuda própria e a de sua irmã, Ora. Ângela Gama, o que muito me auxiliou na minha vida familiar.
Realmente esta história ê digna, e a Ciência fica-lhe a dever muito.
OS COLEÓPTEROS
Na realização da tarefa da arrumação dos Coleópteros muito devo também à orientação que o Sr. Dr. Manuel Assunção Diniz, por toda a simpatia, amizade e ajuda constante que me tem dado. Sem ela talvez eu não tivesse coragem para prosseguir. Os meus anos de prática não seriam suficientes, pois a formação académica, que não possuo, intimidava-me, dado o rigor que sempre ponho nestes trabalhos, fruto da experiência adquirida em Angola, que fez de mim o que realmente sou.
Inicialmente foi necessário reunir todos os exemplares que se encontravam em caixas de cartão, na sua maioria em muito mau estado de conservação e dispersas, sem indicação das famílias, géneros e espécies.
Mais tarde iniciei então o registo de todos os exemplares existentes no Museu em livros destinados a esse fim e com abertura feita pelo Sr. Doutor Manuel Assunção Diniz.
No que respeita à etiquetagem, foram mantidas as etiquetas antigas, respeitando rigorosamente os elementos nelas encontradas, por vezes ilegíveis e difíceis de decifrar. Colocaram-se outras etiquetas com os respectivos números de registo que providenciarão uma mais fácil localização dos exemplares, razão que se aponta como de referência, mas sujeitos ainda a confirmação dos sistematas.
A arrumação sistemática das colecções dos Coleópteros de Portugal, foi iniciada a partir da colecção do Professor Doutor Manoel Paulino de Oliveira, por ser uma colecção de referência e que o Dr. João Miguel ladeiro já havia iniciado, deixando catálogos bem elaborados e se mais não fez, foi porque a morte cedo o ceifou. Também o Sr. Doutor Anthero Frederico de Seabra deixou um aditamento ao catálogo de Paulino de Oliveira, que muito me ajudou na elaboração desta tarefa.
Todos os exemplares de Coleópteros encontrados disperses, foram cautelosamente arrumados por famílias, a seguir às famílias das colecções já referenciadas. Fizeram-se grupos por comparação, para que os futuros Entomologistas os estudassem sem perda de tempo na sua procura.
Seguiu-se a integração dos exemplares da colecção do Dr. José Maximiniano Correia de Barros, por se tratar de exemplares identificados de grande interesse da região de leiria. Igualmente integrados foram os exemplares estudados pelo Dr. Raul Nascimento Ferreira e Eng.º Tristão Valente e Branco. Registados os exemplares, estes foram integrados junto das colecções do Professor Doutor Paulino de Oliveira. Pelo facto de não ser sistemata, a formação dos grupos foi feita segundo "familiarização" com outras colecções de Angola, que mantive desde a sua preparação até à arrumação, que me permitira a experiência para o fazer. Embora eu lhes tivesse
dado o nome das famílias, peço que me perdoem os Entomologistas se encontrarem erros, pois a ideia foi realmente reuni-los para facilidade de consulta.
Dispersos como se encontravam e misturados em famílias que à prlorl se me afiguravam diferentes, este tornou-se um trabalho demorado, pois só ao encontrar algum exemplar com referência de género ou espécie me permitiu chegar às famílias por comparação, dado o meu desconhecimento credível na sistemática. Longe de mim dizer "é" para qualquer espécie. Por isso, todo o material encontrado disperso deverá ser sujeito a confirmação.
Sugestões de Consulta
Depois dos livros de registo elaboraram-se dois ficheiros, o primeiro com os nomes das espécies, agrupadas por ordem alfabética onde consta o número e a gaveta onde se encontram, servindo este ficheiro para consulta rápida, quando solicitada por um sistemata que deseje consultar uma determinada espécie; o segundo é constituído por fichas sistemáticas, onde consta todo o historial de cada exemplar identificado, existente no Museu Zoológico e que se articula com o primeiro ficheiro. Tudo isto para dizer que se pretendeu com este trabalho o fácil acesso às colecções e localização dos exemplares. Com as novas tecnologias, sei que a maioria dos investigadores poderá achar perda de tempo ou repetição de tarefas. No entanto, respeitando todas as opiniões e sem querer enaltecer o trabalho que a mim me impus realizar, podem querer que, numa desorganização de que ninguém pode ser acusado, depois do falecimento do Dr. ladeiro, nada mais encontrei como esclarecedor para a minha tarefa. Na desorganização, encontrei caixas com exemplares identificados há mais de vinte anos, e que não tinham sido integrados nas colecções. Procedeu-se ao seu registo, tendo-os integrado junto dos exemplares já registados, e foram também registados nas fichas sistemáticas. Para informação dos sistematas ou investigadores que desejem consultar os exemplares identificados, poderão encontrar nas fichas sistemáticas todos os dados respeitantes às espécies. No caso de sistematas interessados em estudar os Coleópteros de várias famílias, seria proveitoso servirem-se dos exemplares que seguem as famílias das colecções e que estão sujeitos à confirmação das famílias e determinação das espécies. logo que estas estejam estudadas e como cada exemplar possui número de registo, poderão ser preenchidas as colunas em branco nos livros de registo e fichas de sistemática com a actualização, que serão posteriormente adicionadas às já existentes.
Considerações Finais Foram registados 28314 exemplares de Coleópteros de Portugal, catalogados em 57 famílias, onde se integraram todas as espécies determinadas. Os exemplares não identificados seguem as famílias para melhor localização dos mesmos. As espécies estão mencionadas num ficheiro, que se encontra no Museu.
Todo este trabalho foi feito pensando nos futuros Entomologistas.
Penalizo-me por me ter envolvido numa tarefa, que jamais imaginei tão extensa, mas julgando-a de enorme interesse, para mim apaixonada por esta ciência, e de tão somenos importância para outros.
Sem apoios de qualquer espécie, só a ajuda da Professora Doutora Manuela Gama e do Dr. Assunção Diniz me fez continuar empenhada em terminar a tarefa, não esquecendo também os professores da Associação de Biologia e Geologia que me deram todo o apoio moral, amizade e compreensão na ocupação dos espaços que esta tarefa necessita para a sua realização.
A demora para a concretização desta tarefa foi motivada pela falta de caixas que, por falta de verbas, não me foram concedidas pelo Museu, tendo por isso de fazer uma arrumação provisória em caixas que o Sr. Dr. Assunção Diniz tão generosamente me cedeu, pois se as tivesse logo de início, teria conseguido arrumar os exemplares definitivamente. Mais tarde foram-me concedidas pelo Professor Doutor Rui Girão, trinta caixas, o que permitiu o prosseguimento da tarefa.
Todo este trabalho foi concebido e inspirado na Introdução dada pelo Professor Doutor Manoel Paulino de Oliveira, no seu "Catálogo Coleópteros de Portugal".
A sensibilidade e harmonia das suas sublimes palavras e sabendo-o autor de várias obras ligadas ao estudo das diversas ordens que se encontram através dos escritos dos Doutores Lopes Vieira e Augusto Nobre, depositadas no Museu Zoológico, nunca será de mais repetir, com relevância merecida, a enorme dedicação e estudo dedicado por aquele Cientista.
Também é de recordar e louvar outros cientistas que desempenharam actividade relevante no Museu Zoológico na Organização da Galeria de Entomologia comparada. Foram eles o Professor Dr. Miguel Ladeiro e o Doutor Seabra, Homens a quem a Ciência muito ficou a dever e eu, humilde "Preparadora de Insectos", fico-lhes grata por ter conseguido prosseguir na arrumação dos Coleópteros, baseando-me nos elementos encontrados nos seus bem organizados trabalhos.
Também estou reconhecida a todas as pessoas, que, com a sua boa vontade e espírito de ajuda, contribuíram para que se levasse a bom termo esta tarefa. Perdoem-me os vindouros a imperfeita redacção desta narrativa, onde as palavras não ditas poderiam provavelmente melhor sintetizar o que não fui capaz de dizer...
Espero que os Homens a quem faço a minha sentida homenagem, onde quer que se encontrem, fiquem sensibilizados. Quando digo "onde quer que se encontrem" é porque para mim, estes Homens com "H grande" nunca morrem. Resta-me a esperança de que o futuro nos legará outros semelhantes... Também não me interroguem sobre a verdadeira afeição que nutro pelos insectos; gosto de todos eles de igual forma... A maior parte dos jovens só se interessam pelos Lepidópteros (borboletas) porque desde crianças foram habituados a gostar destes insectos devido ao colorido das suas asas e ao seu leve esvoaçar. Faz-me lembrar as pessoas que, quando desprovidas de beleza física, ou não se evidenciaram perante os outros, acabam por não ter ninguém que fale delas. Por vezes alguma coisa fica, mas só reconhecida depois da morte ... Aos vindouros faço o meu grande, mas humilde apelo: reparem em todos os insectos e verão que, quando bem analisados, todos têm o seu encanto... Lutem por uma natureza mais protegida e por um estudo da Entomologia da maneira menos cruel possível... Digam não à destruição por insecticidas ou outros venenos... Apostem na "luta Biológica" para que neste mundo continuemos a proteger a Obra maravilhosa que Deus nos legou. A Natureza encerra a paz de espírito que não encontrarão noutros lugares.
Há uma nota importante que eu profetizo para o futuro da Entomologia em Portugal:
- gostando imenso dos insectos, paradoxalmente reconheço que eles são muito prejudiciais à agricultura, mas úteis ao ambiente. O seu estudo não se pode dissociar, pois, no meu entender, Entomologia, Agricultura e Ambiente, estão interligados. No estudo do combate às pragas, realmente a maneira mais actual para esse combate são "os pesticidas", que muitos prejuízos trazem ao Homem.
A Entomologia ligada à Agricultura irá trazer muitos incentivos aos jovens, que neste momento estudam Biologia e Agronomia, como por exemplo, com os estudos que poderão fazer em laboratório e no campo, "Ciclos Biológicos" (tão interessantes) e aperfeiçoamento de técnicas para aplicação na luta biológica, que no nosso país estão muito pouco desenvolvidas. Por esta razão persistimos ainda no uso dos insecticidas que, sendo eficazes na luta contra as pragas, são muito prejudiciais ao Homem. No entanto, se não os usarmos nenhuma cultura sobrevive.
Se as tratamos podemos morrer intoxicados. Se não as tratamos podemos morrer de fome. Que contradição!
Digam então os cientistas destas matérias o que havemos de fazer? Se todos nós pensarmos nestas questões, talvez encontremos nelas as tão desejadas respostas. Não podemos deitar-nos à sombra de uma árvore a ouvir o maravilhoso zumbido dos insectos, pois ao acordarmos, espreguiçando-nos, podemos ser picados por eles. Será que este sinal não será para nos alertar para toda a nossa inércia? Ou será a revolta por os querermos eliminar? São seres vivos ... O Homem, quando o atacam, procura defender-se, para que não o matem, mas por vezes é morto. E o mundo todo reclama a onda de violência de que todos somos vítimas. E quando já não tivermos insectos, porque os insecticidas os venceram? Consta que há lugares no Globo onde eles quase não existem.
Toda esta minha meditação preenche parte da minha vida. Incapacitada já pela idade, mas sempre com o pensamento em Deus, peço aos meus netos que ocupem algum do seu tempo, procurando melhorar todo o ambiente em que vivemos, para que o ser humano possa vir a ser mais feliz.
Foram ainda as palavras do Professor Doutor Paulino de Oliveira, com a simplicidade e sabedoria depositada na sua obra, a razão pela qual me propus homenageá-lo citando neste trabalho a sua nota introdutória, traduzida por mim e penalizando-me por essa ousadia, do «Catálogo dos Insectos de Portugal- Coleópteros».
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CATÁLOGO DOS INSECTOS DE PORTUGAL - COLEÓPTEROS
Prof. Doutor Manoel Paulino de Oliveira
Introdução
Depois de alguns anos dedicados ao estudo dos insectos de Portugal, sinto um forte desejo de publicar a sua fauna entomológica, porque não existe um único catálogo das nossas riquezas entomológicas, enquanto que outras nações da Europa possuem numerosos trabalhos e monografias sobre diferentes Ordens de insectos, especialmente sobre Coleópteros e Lepidópteros.
Infelizmente eu reconheço agora a impossibilidade de o fazer, já que uma existência não será suficiente para estudar detalhada mente algumas Ordens, facto reforçado ainda por se tratar de uma classe, como a dos insectos, constituída por um grande número de espécies.
Além disso, devido à má organização do ensino público em Portugal, afastei-me dos meus estudos favoritos, e entreguei-me à Análise Química e Química Orgânica da Universidade.
Existe ainda uma outra dificuldade para o estudo dos insectos do meu país. Exceptuando o meu amigo Sr. A.A. de Carvalho Monteiro e a sua rica colecção e biblioteca de Lepidópteros, nós não possuímos ainda uma única colecção e biblioteca de Entomologia que possamos consultar com proveito. Nunca fizemos um estudo regular sobre os insectos de Portugal, e várias pessoas admiram-se da minha atracção pelo estudo dos insectos.
Frequentemente perguntam-me qual o interesse disso? Que proveito poderemos retirar do estudo dos insectos? Infelizmente vejo pessoas possuidoras de uma fortuna e inteligência que não tenho, ocuparem-se de tarefas que lhe perturbam o espírito, lhe enfraquecem o corpo, e não lhe purificam a alma. Será que esquecem que a morte vlrá mais cedo do que esperamos? Será que sabem que ela é um obstáculo certo e insuperável para as ambições humanas? Quereremos obter a glória eterna da vida futura, em troca do inferno que construímos nesta vida com enormes ambições, falhadas, a maior parte delas, no final da nossa existência? Eu não os compreendo. Como recompensa, também me parece, que não me faço compreender. Eles sentem se bem com eles próprios e eu também.
Estou contente com os meus insectos. Passeio com prazer, sempre na esperança d descobrir uma boa espécie, e regresso a casa feliz. Em tempo algum o sonho de uma colheita não conseguida me tira o sono. Regozijo-me quando ao nascer do sol, nos belos dias de Primavera ou de Verão, me encontro no cume de uma montanha, perante a natureza, rodeado de espécies raras ou mesmo desconhecidas de todo o mundo. Procuro-as com prazer.
Ninguém se intrometa entre mim e as minhas aspirações, e estou certo que só trará bem para outros, já que em tempo algum espezinharei os meus semelhantes, olhando tão somente o prazer que a minha imaginação criou, e que num momento se vai, mais depressa do que uma tempestade destrói a corola da mais bela flor.
A nossa felicidade restringe-se a pequenos desejos, que podemos com facilidade satisfazer. O objectivo final da nossa existência é, em todos os sentidos, e para todos o mesmo: a morte. Com ela, aquilo que esperamos na vida presente desaparece, e o destino da alma na vida futura nada tem a ganhar com a perturbação do espírito durante a nossa existência actual. Ninguém o afirma e eu não acredito.
É preciso conhecer bem a nossa existência efémera. Aqueles que se satisfazem com pouco para acomodar o corpo e tranquilizar o espírito sem arrependimento para a alma, encontram o céu neste mundo, e não temem o inferno no futuro.
Estudando os insectos, encontro tudo isso. Bem-estar para o corpo, uma vez que, na esperança de encontrar bons exemplares, eu passeio e respiro ar puro do campo, sem o aborrecimento que sentem frequentemente aqueles que passeiam apenas, porque o reconhecem como necessário. Aí encontro também a tranquilidade do espírito; a experiência de vários anos faz-me reconhecer como tal. E quanto ao destino da alma, eu creio nada ter a temer com o estudo dos insectos, visto que não faço mal a ninguém com a minha vida de naturalista.
Nenhuma destas dificuldades - a falta de tempo, a falta de livros, de colecções e entomologistas de referência em Portugal, nem mesmo a estranheza surpreendente dos meus compatriotas, que observam a minha rara dedicação pela Entomologia, me desencoraja,
Estou seguro da imperfeição dos trabalhos que vou iniciar. Os primeiros trabalhos que foram publicados nos outros países, em circunstâncias semelhantes, são de igual modo imperfeitos.
Existem famílias e ordens que eu nunca estudei. Eu publicarei pouco a pouco o resultado dos meus estudos sobre as diferentes famílias, à medida que as tiver estudado.
Eu não receio a crítica dos naturalistas mais credenciados do que eu; pelo contrário, isso agrada-me. Com a certeza da imperfeição destes trabalhos, é meu desejo corrigi-los tantas vezes quanto o necessário. Aos futuros entomologistas portugueses caberá a glória da publicação de obras mais perfeitas. Para mim, agrada-me a ideia de as ter começado com alguma regularidade e de fazer todo o meu possível para as apresentar o menos incompletas, desde que as minhas forças o permitam.
A minha única intenção, é de tornar conhecido fora do meu país, aquilo que nele existe, de encorajar os futuros entomologistas de Portugal, e de lhes poupar alguns obstáculos, que encontrei, pela falta de publicações sobre os nossos insectos.
Pudessem ao menos estas considerações levar a que estes trabalhos tenham um acolhimento favorável.
Antes de começar esta publicação eu citarei os estudos mais importantes que os naturalistas estrangeiros fizeram ultimamente, sobre a Entomologia de Portugal.
M. le Comte de Hoffmansegg, depois de ter percorrido todo o Portugal, durante os anos 1798, 1799 e 1800, para estudar a nossa flora, capturou vários insectos que entretanto não descreveu, tendo enviado alguns a M. le Comte Dejean. Os restantes encontram-se no Museu de Berlim.
M. le Comte Dejean também visitou o norte de Portugal, e encontramos a descrição de todos os Cicindelídeos e dos Carabídeosque ele recebeu de M. le Comte Hoffmansegg e que ele próprio capturou, no seu Species général des Coléoptêres, Paris 1825-31, e na Iconographie et Histoire noturelle des Coléoptêres d'Europe, Paris 1829-36. 0s tipos que ele descreveu, pertenciam à colecção de M. le Baron de Chaudoir.
Mais tarde em 1868, M. Vuillefroy Cassini veio a Portugal e descreveu no seu quinto volume de L' Abeille quatro espécies novas de coléopteros do nosso país.
Neste mesmo ano e na mesma época M.M. lucas Von Heyden e Piochard de la Brulerie percorreram uma grande parte de Portugal. A descrição da viagem e os resultados obtidos dos seus estudos foram publicados na Entomologische Reise nach dem sudlichen Spanien, der Sierra Guadarrama und Sierra Morena, Portugal und den Cantabrischen Gebirgen, beschrieben Von Lucas Von Heyden, Berlin, 1870.
Em 1871 o meu amigo tão saudoso, M. CamilIe Van Volxem, decide no último ano, recolher um bom número de espécies, que levou para a Bélgica, e os cicindelídeos e os carabideos, foram estudados por M. Jules Putzeys. Encontramos o catálogo destas espécies nos Annales de la Société Entomologique da Bélgica de 1874, pago 47 e seguintes.
Noutros trabalhos, que se referem na sua maioria aos cicindelídeos e carabídeos, poderemos nomear algumas descrições dispersas em várias publicações.
Vemos que estamos bem pobres relativamente à Entomologia em Portugal. Felizmente, e regozijo-me ao dizê-lo, nós estamos bem mais avançados no estudo dos nossos vertebrados, graças ao meu amigo M. José Vicente Barbosa du Bocage, Director da Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa. Ele estudou exaustivamente todas as classes destes animais, ajudado por MM. Felix de Brito Capello e José Augusto de Sousa.
A colecção dos mamíferos do Museu Nacional de Lisboa, de répteis, batráquios, peixes de Portugal e exóticos, sobretudo no que se refere às aves, está entre os primeiros da Europa. A M. Barbosa du Bocage pertence a glória de ter estudado os nossos vertebrados, do mesmo modo que a MM. Felix d' Avellar Brotero e a le Comte de Hoffmansegg aquela lhes pertence por terem feito conhecer a nossa flora.
Entre os estudos de Zoologia em Portugal, não devo esquecer os trabalhos sobre a conquiliologia de M. Arthur Morelet e dos meus amigos MM. Albino Giraldes, professor de Zoologia da Universidade, Barbosa du Bocage e José de Castro, residentes no Porto.
Para o estudo dos nossos insectos os meus compatriotas e os naturalistas estrangeiros prestaram-me um grande auxílio. Os primeiros enviando-me espécies de insectos de Portugal, e os entomologistas estrangeiros fazendo-me envio de insectos de toda a Europa, para comparação com as espécies do nosso país, e dando-me frequentemente esclarecimentos que eu solicitava. Devo-lhes um testemunho público de gratidão, o que faço com um grande prazer. Farei uma menção especial a alguns, e peço a todos para receberem este testemunho com a minha sincera consideração.
Em primeiro lugar citarei M.me la Duquesa de Palmela, que, com uma complacência sem limites, e sempre pronta a encorajar aqueles que estudam, pôs à minha disposição lépidopteros em duplicado da sua magnífica colecção, os únicos exemplares que ela possuía de algumas espécies que eu ainda não tinha. Deveria também destacar, a ajuda que recebi de M. me Marianna Lopes d' Azevedo, da cidade de Leiria, que enriqueceu em muito a minha colecção de Coleópteros, fazendo-me chegar em quantidade, boas espécies, e entre elas uma espécie nova.
Além das Senhoras, dignas do meu mais vivo reconhecimento devo distinguir: Monsenhor Bispo eleito D. António Ayres de Gouvêa; MM. o padre Manuel Ozório Gonçalves, professor no Liceu de Faro; o padre António Saraiva da Costa, de Santa Marinha, aldeia situada no sopé da Serra da Estrela; o padre Manuel José Martins Capella, de Carvalheira no Gerês; o Visconde de Esperança (José) d'Évora; o Doutor Júlio Augusto Henriques, Professor de Botânica da Universidade; o Doutor Adriano Xavier Lopes Vieira, Professor da Universidade; António Augusto de Carvalho Monteiro residente em Lisboa; William Tait residente no Porto; J. V. Barbosa du Bocage; José Maria Rodrigues, médico em Penamacor; Joaquim do Nascimento Trindade, médico em Tavira; António Eduardo de Macedo Ortigão, da cidade de Faro; José lúcio Corrêa da Fonseca, farmacêutico em Beja; José Maria Rosa de Carvalho, residente em Coimbra; José de Castro, residente no Porto; António José de Barros, Eugénio Eloísio Alvares Fortuna, Wenceslau de Sousa Pereira Lima e António Rodrigues Mendes Castanheira, antigos alunos da Universidade; Joaquim Antunes dos Santos, farmacêutico na Azambuja; João Daly Alves de Sá, da cidade de Lisboa.
Perante a impossibilidade de dar a conhecer neste momento, todas as boas espécies que recebi de cada um destes senhores, eu o farei ao estudá-los e isso me proporcionará o prazer de publicar o nome de todos aqueles que com o seu esforço me ajudaram no estudo da nossa Entomologia.
Quanto aos Naturalistas estrangeiros, nomeá-Ios-ei à medida que publicar os estudos das famílias particularmente por eles estudadas.
Hoje ao iniciar, um catálogo dos cicindelídeos e carabídeos de Portugal, não será demais agradecer a extrema cortesia de M. Jules Putzeys, Presidente da Sociedade Entomológica da Bélgica, que muito estudou os nossos carabídeos. Para além dos numerosos e úteis esclarecimentos que lhe devo, estudando as espécies duvidosas da minha colecção, enviou-me generosamente as suas preciosas publicações. Eu lhe peço que aceite os meus mais vivos agradecimentos.
o caminho fica aberto
a quem mais quizer dizer.
Tudo o que escrevi é certo.
Não pude mais escrever
por não ter mais descoberto.
Garcia de Resende, Miscelânea